Não que eu seja de reparar na vida alheia, muito menos de comentá-la. Mas o acontecido no velório do Dr. Vasconcelos impressionou-me sobremaneira. Não tanto pelo inusitado do acontecido, quanto pela falta de reação dos presentes. O leitor há de concordar comigo, o inusitado surpreende ainda mais quando a ninguém surpreende.
Não era um velório que contasse com a minha presença. A relação mais próxima que eu tinha com o falecido era a de ter estudado com seu sobrinho no segundo grau. Mas calhou de falecer-me um vizinho na mesma data, tendo sido os velórios quase concomitantes. Ao encontrar meu antigo colega no cemitério, a conversa arrastou-nos até a capela do Dr. Vasconcelos, onde me deparei com a primeira estranheza do dia: o falecido tinha sob os dedos entrelaçados um microfone. Nem mesmo esbocei perguntar a meu amigo a razão de ser daquele enfeite, certamente uma homenagem original a um homem conhecido pela verve em toda e qualquer ocasião. Não era necessário privar da intimidade do Dr. Vasconcelos para saber de seu pendor para a oratória, manifesto em reuniões familiares, matrimônios, finais de Copa do Mundo e velórios de seus antecessores de passamento. Todos sabiam, todos comentavam, todos o admiravam pelo dom. Assim sendo, segui conversando com meu amigo, naquele sussurrar respeitoso de velórios, tentando não importar-me com o microfone.
Lá pelas tantas, chega o padre para o culto derradeiro que precede o sepultamento. Um homenzinho mirrado, de voz quase inaudível, comandando orações hesitantes entre os presentes. Hoje em dia cada vez menos pessoas sabem de cor as palavras cristãs a serem ditas nos momentos de elevado teor espiritual, e o sussurrante padre em nada ajudava a plateia desanimada. Chegado o culto ao fim, o padre já fazia sinal para que fechassem o caixão, quando a viúva o interrompeu. O fim do culto era a deixa para o Dr. Vasconcelos brilhar como de costume.
Pois este se ergue do caixão com seu microfone em punho, espalhando flores pelo chão, num movimento mais teatral do que desajeitado, como poderia se esperar. Empertigou-se ao lado de uma coroa de flores e deu início a seu discurso.
Num primeiro momento, eu fiquei em estado de choque, o que foi muito adequado, mantendo-me mudo e inerte. Sou o tipo de pessoa que expressa muito mal os sentimentos e considero isso uma sorte. Mas, ao presenciar aquele defunto em pé ao lado do próprio caixão, derramando-se num discurso elogioso sobre ele mesmo, comecei a temer por meu autocontrole.
O Dr. Vasconcelos tinha as narinas tampadas por pedaços de algodão, que davam a sua falecida voz um quê de fanho tétrico indescritível. E o discurso se estendia em exaltações à sua figura como pai, esposo, profissional e cristão; mencionou sua vasta obra publicada, desde artigos até sonetos, trouxe à luz grandes feitos beneficentes que operara em humilde silêncio durante a vida, tão modesta era sua alma caridosa.
Meu estado de choque passou a elétrico e comecei a procurar por rostos espantados a meu redor. Já não me incomodava tanto o morto orador, mas a total serenidade com que o acompanhavam os presentes. Meu amigo lançava um olhar plácido sobre o tio, esboçando um sorriso orgulhoso por partilhar do mesmo sangue que até o dia anterior corria nas veias daquele homem admirável.
Longo foi o discurso do Dr. Vasconcelos, como longa foi minha luta por manter-me são em meio àquela loucura. Ao finalizar sua fala, o elegante defunto entregou o microfone a sua viúva e voltou ao caixão, ajeitando-se na posição que cabe àqueles que vão ser sepultados. Ouviram-se alguns aplausos tímidos, algumas lágrimas convenientes caíram. Mas espanto não se viu. Afinal, o Dr. Vasconcelos era um grande orador, que jamais perdia a oportunidade de manifestar-se em ocasiões especiais. Todos sabiam, todos comentavam, todos o admiravam pelo dom.
E eu, que não sou de reparar na vida alheia, muito menos de comentá-la, só quis aqui deixar registrado o fato que me impressionou sobremaneira. Não o discurso do defunto. Mas a falta de espanto dos presentes.